Parte do Relatório da Organização dos Estados Americanos. A democracia no Brasil é reconhecida. Embora não cite Bolsonaro, A OEA também diz que ocorreu tentativa de golpe no Brasil para a perpetuação do governo Bolsonaro, mesmo após a derrota bolsonarista nas urnas
RELATÓRIO
A convite do governo brasileiro, em fevereiro de 2025, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) visitou o país para analisar a situação do direito à liberdade de expressão. O interesse da RELE em realizar essa missão foi motivado, em parte, pela tentativa de golpe de 8 de janeiro e suas consequências. Este evento, e as reações estatais advindas dele, estão sujeitos a distintas perspectivas no Brasil, o que insta um debate a respeito das medidas necessárias para salvaguardar a democracia, a liberdade de expressão e o Estado de Direito.
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A delegação constatou que o Brasil possui instituições democráticas fortes e eficazes, o que se evidencia por declarações e políticas relevantes do Estado destinadas à conformidade com os padrões nacionais e internacionais de direitos humanos. A visita em si é um gesto nesse sentido. Situar o Brasil como um Estado democrático, regido pelo Estado de Direito, é um pré-requisito para compreender a situação do direito à liberdade de expressão no país. O Estado realiza eleições livres e justas, e é caracterizado pela separação de poderes e pelo Estado de Direito, com arranjos constitucionais que garantem a proteção dos direitos humanos.
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Este relatório procura identificar e avaliar diferentes perspectivas sobre o direito à liberdade de expressão no Brasil. Durante a visita, uma ampla gama de grupos – incluindo pessoas que se opõem ao atual governo, parlamentares de todo o espectro político, defensores e defensoras dos direitos humanos, organizações não governamentais, e pessoas jornalistas – expressaram suas opiniões sobre casos de supostas restrições indevidas à liberdade de expressão, bem como sobre boas práticas do Estado. Por outro lado, houve quem expressasse a opinião de que a ameaça à democracia era tão extrema no período pós-eleitoral que as restrições à liberdade de expressão eram proporcionais, legais e necessárias. A fim de discutir adequadamente essas questões, o relatório também examina o atual marco legal relativo à liberdade de expressão no Brasil, incluindo as hipóteses de sua criminalização, as normas aplicáveis à regulamentação das mídias sociais e as normas aplicáveis às autoridades públicas.
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O direito à liberdade de expressão é um dos pilares da sociedade democrática. No entanto, seu exercício e proteção não ocorrem de forma abstrata. A existência e o funcionamento de instituições democráticas são essenciais para um ambiente que permita o exercício do direito à liberdade de expressão. Não pode haver exercício da liberdade de expressão, liberdade de
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manifestação, liberdade de imprensa, liberdade artística, acesso à informação ou expressão de gênero, identidade ou criatividade humana na ausência de uma sociedade baseada no Estado de Direito e no pleno funcionamento das instituições democráticas.
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A Relatoria entende que o Brasil passou por tentativas deliberadas de deslegitimar os resultados eleitorais internacionalmente reconhecidos do período eleitoral de 2022, além do planejamento e da tentativa de execução de um golpe de Estado. Nesse contexto, a defesa da democracia no Brasil também é um componente fundamental da defesa do direito à liberdade de expressão no país, uma vez que a liberdade de expressão requer uma sociedade democrática para ser plenamente exercida.
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Além disso, a democracia, entendida em sua dimensão substantiva, requer a defesa dos direitos humanos, que são interdependentes e inter-relacionados. Uma sociedade que ignora as obrigações nacionais e internacionais de garantir a igualdade, a não discriminação e o respeito aos direitos humanos não pode, por essa razão, universalizar a defesa do direito à liberdade de expressão. A defesa da liberdade de expressão que ignora a interdependência dos direitos humanos e a relação com outras características da democracia, como eleições livres e justas, causa a erosão de seus fundamentos democráticos e inevitavelmente levará à prevalência de certas vozes sobre outras, que permanecerão silenciadas, sem qualquer possibilidade real de se expressarem.
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A Relatoria observou uma clara separação funcional dos poderes, autonomia judicial e um sistema de freios e contrapesos em pleno funcionamento. O Brasil dispõe, portanto, de amplos meios para continuar defendendo o exercício da liberdade de expressão. A Relatoria enfatiza que o direito à liberdade de expressão deve ser protegido tanto por obrigações de não agir, consistentes com os deveres de respeito, quanto por obrigações positivas, exigidas pelo dever de garantir. Assim, o objetivo deste relatório não é expressar uma opinião sobre se o Estado deve fazer mais ou menos, mas sim fornecer uma perspectiva baseada nas normas vigentes, oferecendo ferramentas para que o Estado, em todos os seus órgãos, possa fortalecer o cumprimento de suas obrigações, de modo que a defesa adequada do direito à liberdade de expressão contribua, sempre e cada vez mais, para a defesa da democracia e do Estado de Direito.
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A Relatoria reconhece a gravidade das tentativas de alteração da ordem constitucional relacionadas ao resultado das eleições de 2022, que levaram à atuação de diversos poderes do Estado. A própria gravidade dos ataques exige que operadores e operadoras da justiça ajam com rapidez e imparcialidade para determinar definitivamente a culpa de todos os
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responsáveis. A celeridade dos processos é especialmente importante quando estes envolvem limitações cautelares ou interlocutórias à liberdade de expressão. Nesse sentido, existem intensos debates em torno dos atrasos nos mecanismos de investigação, sem informações conclusivas sobre o seu encerramento. Assim, surgem dilemas legítimos decorrentes do contraste entre a ação do Estado e os padrões interamericanos sobre liberdade de expressão, e a Relatoria incentiva o Estado a resolvê-los.
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A polarização das posições políticas e institucionais também afeta as interpretações do direito e das restrições à liberdade de expressão no Brasil e inibe o debate público construtivo. Essa polarização pode impedir a diversidade de perspectivas. De fato, a Relatoria constatou que há quem, no Brasil, reconheça as nuances históricas e os dilemas relacionados à liberdade de expressão, mas se sinta inibido a participar do debate público, uma vez que o debate parece ter se consolidado em posições imutáveis.
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Por um lado, alguns dos atores que mais acusam o Estado de censura tentam restringir a livre divulgação das ideias de seus oponentes, chegando a pedir ao Estado que o faça. Também é digno de nota que alguns atores relutam em repudiar eventos do passado recente que foram considerados pela CIDH como ataques à democracia brasileira, ou mesmo as profundas desigualdades estruturais que desafiam a sociedade brasileira. Por outro lado, o direito à liberdade de expressão é comparado a ameaças existenciais às sociedades democráticas, o que ignora o papel que esse direito desempenha na manutenção da democracia e na proteção das vozes minoritárias contra as maiorias. O entendimento de que a liberdade de expressão é um risco para a democracia, em vez de um de seus elementos constitutivos, é um dos problemas mais delicados que foram identificados no marco institucional.
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Nesse sentido, é relevante reconhecer que um ambiente totalmente propício ao exercício da liberdade de expressão exige, simultaneamente, garantias para a expressão especialmente protegida e restrições adequadas à expressão não protegida. Nesse sentido, tanto conceber a liberdade de expressão como completamente irrestrita, quanto adotar restrições que não atendam aos critérios necessários, podem ser um risco para a democracia.
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Nesse contexto, as autoridades brasileiras, apoiadas por certos setores da sociedade civil, às vezes se mostram relutantes à autocrítica e a questionamentos da compatibilidade das restrições à liberdade de expressão com os padrões interamericanos. A defesa da democracia não pode ser alcançada por meio de restrições exageradas que equivalem a
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censura. Ao mesmo tempo, a liberdade de expressão não deve ser usada para minimizar o imperativo de que se alcance verdade, justiça e responsabilização pelas tentativas de alterar a ordem constitucional em 2023.
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Há um importante debate no Brasil sobre uma suposta falha das autoridades investigativas em esclarecer e prevenir adequadamente os ataques às instituições democráticas antes de 2023, como, por exemplo, ao não ter iniciado investigações oportunas. A Relatoria entende que o Supremo Tribunal Federal desempenhou um papel fundamental ao iniciar procedimentos para investigar e resolver essa situação. No entanto, também há preocupações de que essas medidas constituam uma concentração de poder. Embora a defesa da democracia deva fundamentar a ação do Estado, há o risco de transformar uma solução temporária, destinada a ser excepcional, em um problema duradouro, ao criar precedentes que podem ser usados em benefício de regimes potencialmente autoritários no futuro. Mitigar esse risco requer o reconhecimento de quaisquer excessos na ação do Estado, especialmente quando ocorrem em relação às ameaças mais críticas à democracia que geraram as medidas excepcionais.
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A Relatoria constatou que a sociedade brasileira continua fortemente marcada pelo legado da ditadura militar ocorrida na segunda metade do século passado, com marcas de autoritarismo e desigualdade estrutural que informam a divisão social de poderes e direitos. A falta de uma resolução completa desse passado ditatorial, sem iniciativas suficientes de memória, verdade e justiça, levou à sobrevivência acrítica de sintomas, discursos, formas de exercício do poder e atitudes autoritárias. Alguns dos atores que mais energicamente se referem ao direito à liberdade de expressão desconsideram o fato de que o Estado, em todos seus momentos políticos e por meio de diversos órgãos federais e estaduais, historicamente tem usado e continua usando ações repressivas, incluindo o poder policial, contra os grupos mais vulneráveis da população, que também se consideram censurados.
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A Relatoria observou que existem vozes públicas poderosas, em distintos poderes e níveis do Estado que se manifestam, sem medo das consequências, contra as pessoas e grupos sujeitas a sua autoridade. Essas vozes propagam expressões que intimidam o exercício da atividade jornalística e atacam grupos historicamente discriminados, evocando de forma questionável a defesa de seu direito à liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que silenciam outros grupos. A Relatoria observa que a relação entre a liberdade de expressão e a luta contra todos os tipos de discriminação e exclusão social no Brasil é uma preocupação latente,
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monitorada, junto à CIDH, por meio de seus Relatórios Anuais. Nesse sentido, a Relatoria agradece as informações úteis que lhe foram apresentadas durante a visita sobre esse fenômeno, e acredita que elas estão devidamente incorporadas ao seu Relatório Anual de 2025, em um esforço para preservar a legibilidade deste relatório. A Relatoria reitera que o direito à igualdade e o direito à liberdade de expressão devem se reforçar mutuamente. A liberdade de expressão deve ser plenamente garantida para manter uma sociedade pluralista e diversificada, e como ferramenta para que toda a sociedade conheça diferentes realidades e demandas e participe da construção de um futuro mais inclusivo e igualitário.
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O uso da internet no Brasil é ubíquo e influencia fundamentalmente as interações entre a cidadania, o debate público e o Estado. O momento exige que o direito à liberdade de expressão seja levado a sério, incluindo os riscos decorrentes da falta de regulamentação adequada das plataformas sociais privadas que medeiam este acesso à internet. As ações das grandes plataformas são vistas com preocupação por setores que as identificam como vetores de condutas e discursos que prejudicam a democracia. Ao mesmo tempo, certas demandas por regulamentação dessas plataformas exigem que elas policiem o debate público e apliquem sanções rigorosas, o que pode incentivar a criação de mecanismos de censura privada. A urgência percebida em alinhar o poder das grandes plataformas com suas responsabilidades democráticas dá origem a demandas que podem, no sentido contrário, consolidar o poder privado e ter impactos desproporcionais sobre a expressão protegida transmitida nessas plataformas. Nesse sentido, embora seja importante fortalecer a regulamentação das principais plataformas privadas, os marcos regulatórios devem manter as garantias processuais e evitar a concentração indevida de poder.
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O foco das demandas públicas em temas recentes e inovadores da agenda digital, incluindo a inteligência artificial, ocorre sem esforços semelhantes e proporcionais para resolver os desafios de longa data do país na área da liberdade de expressão. Entre esses desafios estão o uso excessivo da força contra protestos; a persistência da criminalização do desacato; a divulgação de discursos discriminatórios e violentos; e a presença de crimes contra a honra na legislação penal, incluindo seu uso contra pessoas defensoras dos direitos humanos e jornalistas. A Relatoria afirma que manter um ambiente onde todas as pessoas possam se expressar sem medo de violência ou represálias, incluindo grupos historicamente marginalizados, é uma agenda prioritária para a defesa da liberdade de expressão na região.
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O sistema interamericano pode contribuir para o reconhecimento dos avanços nas políticas e práticas que promovem a liberdade de expressão, bem como das restrições excessivas ao direito à liberdade de expressão, inclusive aquelas que possam ter ocorrido na busca de objetivos legítimos, como a proteção da democracia e o combate à discriminação. Este relatório tem como objetivo fornecer ferramentas para que o Estado e a sociedade brasileira possam alcançar um equilíbrio adequado entre direitos e possíveis limitações, e fortalecer cada vez mais o Estado Democrático de Direito.
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